Dando sequência às reflexões generalistas da primeira parte, o tema agora encontra maior aderência à específica área da Tecnologia da Informação e suas peculiares características.
Estávamos, na primeira parte desse belo e funcional artigo, discutindo a dicotomia entre funcionalidade e beleza, primeiramente falando de situações gerais para, na sequência, particularizar a questão dentro da área de TI. Àquele momento, você parecia um pouco zangado comigo (com a vida, para falar bem a verdade) e decidimos aguardar por uma suavização dos ânimos para continuarmos. Está mais calmo agora?
– Sim, Álvaro.
Ah, que bom. Retomo o plano, então: automóveis.
Você já reparou que, quase sempre, o motivador do desejo por um automóvel é a beleza? Estamos falando de algo onde você vai transportar a sua própria vida e a beleza vem à frente de questões teoricamente muito mais importantes, como os itens de segurança.
Mas a irracionalidade dessa escolha tem um nível ainda mais refinado para o qual eu nunca encontrei boa explicação: as pessoas que escolhem um automóvel pelo seu design passarão 99% do tempo dentro do carro, impossibilitadas de contemplar suas maravilhosas linhas exteriores. É como se casar com uma linda mulher mas ficar o tempo todo no escuro com ela, sem poder vê-la. Hum… mas nesse caso até que… bom, deixa para lá, exemplo ruim.
Como, a despeito de qualquer teoria, o que vale mesmo é a realidade, ainda que inexplicável, podemos concluir quase paradoxalmente que conferir importância demasiada à beleza é, de certa forma, algo bastante racional, pois se você faz produtos para serem consumidos e se a beleza os ajuda a serem consumidos, é razoável (= razão, portanto, racional) que se leve esse atributo em forte consideração.
Agora, vamos lá, senão você para de ler. Quando falamos de TI, particularmente de desenvolvimento, acontece a mesma coisa: é necessário desenvolver o que o mercado quer comprar.
– E o mercado quer o bonito ou o funcional, Álvaro? Assim… é apenas uma pergunta sincera e pura, ok? Eu continuo calmo.
Perfeito, meu amigo, mas, a essa altura, você mesmo pode respondê-la. Afinal, você não é só desenvolvedor. Você também consome. Você também é o mercado!
Eu sei, eu sei… Soa muito melhor dizer que nossas escolhas foram sempre feitas por causa da funcionalidade, porque esse é o comportamento racional, enquanto a beleza é algo superficial, secundário, até mesmo fútil e blá blá blá. Para cima de mim, não, camaleão. Você sabe muito bem que já escolheu diversas coisas na vida somente por serem mais bonitas, desde picolés até celulares, preterindo diversos outros atributos – não raro, a própria funcionalidade. Vejam os saltos altos das mulheres, por exemplo. Não há calçado mais bonito. Nem menos funcional.
Sei que parece meio triste, mas não há resposta excludente para essa grande pergunta. Talvez houvesse, no passado, mas hoje, com a concorrência acirrada como está, não há escolha. Você precisa entregar as duas coisas: beleza e funcionalidade. Porque, com a abundância de recursos disponíveis, se você entregar algo somente funcional, vai em diversas situações perder para quem entrega muita beleza – e vice-versa.
Lembremos que não estamos falando de TI, apenas, mas do ser humano como um todo. Estamos falando da vida. Porém, [reconheço que você está muito mais comportado hoje] como estamos falando da vida especificamente para pessoas de TI, vamos exemplificar um pouco mais dentro do tema.
Já parou para pensar no grande milagre que é um template (website)? Por vinte doletas, um template entrega um pacote completo de beleza para um cara que só sabe entregar funcionalidade: o programador web que não é designer (e olha que tem muitos, embora não seja crime algum, apenas foco profissional, com o qual eu concordo). Trata-se de uma excelente solução para quem dispõe de recursos limitados e não pode arcar com um profissional especializado em design.
Aí você diz que essa é uma postura amadora, que aquele layout não será exclusivo e que um usuário na Internet pode acabar encontrando outro site igual ao seu.
– Eu não disse isso, Álvaro.
[mas pensou]
Oh, queira me desculpar! É claro que não disse, nem poderia, com a polidez que está apresentando hoje. Digamos que alguém pudesse dizer isso, o que eu rebateria com a seguinte pergunta: você prefere ser bonito exatamente igual ao Brad Pitt ou pavoroso de feio de um jeito que só você é?
Pense comigo. Se os recursos são limitados, ter aplicado ao seu site um template lindo que pode vir a ser encontrado em outro site por um internauta é um risco muito mais interessante de correr do que a possibilidade de o mesmo internauta sentir náuseas logo na home do seu horrível site e interromper imediatamente a navegação com medo de ter caído no lugar errado.
De qualquer forma, essa questão do template é meio polêmica e podemos deixá-la de lado para encerrarmos comentando um caso real de duas software houses muito distintas cuja trajetória eu pude acompanhar bem de perto por vários anos.
Funfasoft era uma software house que muitos diziam ter parado no tempo. Usava tecnologia antiga, produzia softwares cujas telas tinham modernidade levemente superior à do Windows 3.11 mas costumava entregar razoável velocidade e confiabilidade nas operações. Tudo simples, bem comum, bastante feio. Mas rápido.
A Chuchusoft, por outro lado, possuía em seu quadro grandes mentes que, além de brilhantes, estavam constantemente antenadas com as mais novas tecnologias. Seus menus eram muito mais dinâmicos e suas telas apresentavam transparências dignas de layers do Photoshop. Os clientes ficavam encantados logo na apresentação. Mas na hora de processar o “big data”, amigo… Para rodar o treco era necessário um computador da Nasa e, ainda assim, o bicho penava.
Obs.: Sobre endeusar a pirotecnia e se esquecer da performance, lembro das palavras de um grande diretor que conheci: “Hoje em dia, você faz mestrado, doutorado, pesquisas em Inteligência Artificial, tudo para oferecer o que há de melhor para o cliente e, no fim, descobre que a necessidade dele não é integração de processos, inteligência, sinergia… O problema dele é que a consulta está muito lenta. É código mal feito mesmo. É o básico.”.
Nesse toma-lá-dá-cá, Funfasoft criticava Chuchusoft porque lá, embora tudo era muito bonito, ao mesmo tempo era muito lerdo. E Chuchusoft criticava Funfasoft exatamente pela razão oposta.
Quem estava certo? Você já sabe: os dois e nenhum dos dois. Nessa dança entre o belo e o funcional há mais ritmo que no desfile das escolas de samba. Beleza sem funcionalidade dá raiva. Funcionalidade sem beleza dá raiva… de viver.
Receando que você volte a se irritar com minhas digressões, fico um pouco reticente de citar a Bauhaus e o conceito de “estética funcional” do modelo alemão, por exemplo. Mas, se formos analisar só de leve, não é disso que estamos falando o tempo todo? Afinal, o que são as preocupações com o par UI e UX – sem dúvida uma das mais modernas áreas dentro do grande guarda-chuva do desenvolvimento em TI – senão a tentativa de conciliar, da forma mais harmoniosa possível, design e funcionalidade? Não é o que a Apple, recentemente indicada (de novo) como a marca mais valiosa dos Estados Unidos, vem tentando fazer desde… sempre?
Bem, se os grandes estão fazendo, você também deve (ou ao menos, pode tentar) fazer.
Pense nisso.
2 Comentários
Lido e guardado para futuras consultas.
Obrigado pelo tempo dedicado no desenvolvimento dos dois textos!
Mais uma vez um pouco chateado por não ter visto nenhum comentário ou interação com o belo e funcional material produzido 🙂
Abraços.
Olá, Felipe,
Agradeço por seu elogio. Quanto aos volume dos comentários, não se preocupe. A qualidade sempre imperará sobre a quantidade – e a qualidade do seu comentário vale por mil.
Abraços!