Alguém do século passado

“Eu não vi Kennedy morrer. Eu não conheci Martin Luther King. Eu não tenho muito para dizer… ? Nasci em 62, nasci em 62. Eu não conheci os políticos. Mas conheci a mentira. Li tudo nos livros. Aprendi na escola”.

Esse é o trechinho inicial de uma música da banda de rock brasileiro Ira!. Bem, apesar de gostar do som deles, ao contrário do que diz a letra, tenho algo a dizer. Realmente não vi Kennedy morrer em transmissão ao vivo pela televisão e nem conheci Martin Luther King pessoalmente. Claro que aprendi muita coisa nos livros e na escola, mas também acompanhei outros momentos históricos da pista ou da arquibancada e, eventualmente, da área VIP da vida.

Imagem via Shutterstock

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Embora o que tenho a falar tenha relação com a história (sim também somos parte disso tudo) está mais diretamente ligado à evolução tecnológica que estamos presenciando. Na verdade nasci em 66. Então sou uma pessoa do século passado, acho até que posso dizer que sou antigo, aliás, bem antigo.

A velocidade do mundo está me assustando. Ainda lembro o meu início profissional, quando tive meus primeiros contatos com a informática. Bem, se você que está lendo tem menos de 30 anos talvez não saiba, mas quando eu ainda tinha espinhas no rosto, a TI foi chamada de “informática” e antes ainda de “processamento de dados”. Os termos “ciência da computação” e “tecnologia da informação” são bem mais recentes.

Um pouco de currículo e história

Em 83, logo que terminei o curso técnico de processamento de dados na ENCE, instituição federal de ensino vinculada ao IBGE, fiz um curto período de estágio no próprio IBGE. No curso técnico, além do currículo de disciplinas do ensino médio, aprendíamos também conceitos de programação de computadores e sua utilização prática nas linguagens já estabelecidas, como Cobol, PLI e Fortran. Neste período conheci a grande novidade do momento: “Basic” e o já consolidado academicamente, Pascal.

Em 86, fiz curso de programação em um Instituto de Tecnologia. Lá fui monitor do laboratório de informática e estagiário, onde ensinei programação a muitos estudantes do 2º grau no instituto. Como meu turno era logo de manhãzinha, também tinha a responsabilidade de fazer o “IPL” do computador da casa, um Cobra 520 médio porte de 16 bits, que só rodava Mumps e Cobol. IPL para quem não nasceu no século XX era o “boot” dos dias atuais e para isso era necessário um “floppy disk” de 8”. O troço era do tamanho de um compacto. Ok, ok, vou explicar: gente nova, antes do compact disc, o CD, existiu num tempo (nem tão) longínquo, uma mídia de áudio chamada “disco de vinil”, o LP ou Long Play. Havia também o formato menor que trazia normalmente uma música de cada lado (sim o disco tinha dois lados), o qual era chamado de “compacto” por aqui e internacionalmente de “single”.

Pouco tempo depois consegui emprego como programador numa empresa pequena, onde eu fazia parte do importantíssimo “CPD” (Centro de Processamento de Dados) e era chamado de “rapaz do computador”. Nesta época, as profissões de programador ou analista de sistemas eram bem respeitadas. A visão que a maioria das pessoas tinha de alguém que conseguia falar a “língua do computador” era de uma coisa sobrenatural, cercada de mística, alguém que tinha “superpoderes”.

Meus programas eram escritos a lápis em “folhas de codificação”, passados para o setor de perfuração de cartões, leitora e só então, eram disponibilizados para edição via terminal. Nesta época, nem todas as empresas tinham equipamento próprio e, na maioria das vezes, pagavam aluguel caríssimo para utilizar os equipamentos de outras empresas. Portanto, deixar um programador digitar um programa inteiro era imperdoável. A edição só era permitida para corrigir pequenos erros por questões econômicas óbvias.

Eu editava textos e programas em 80 colunas nos terminais IBM 3270 e usava o aplicativo SPF – System Productivity Facility, mais tarde ISPF – Interactive SPF. Com a popularização dos PC´s – Personal Computers, vários emuladores do ISPF foram disponibilizados facilitando o acesso. Oitenta colunas era o nosso limite por linha. A razão era óbvia, cada linha representava um cartão perfurado, que tinha exatamente 80 colunas.

Os cartões perfurados, herança de Mr. Hermann Hollerith, eram movimentados pra lá e pra cá, manuseados por operadores do bem e do mal, andavam até pelo correio indo de uma cidade a outra dependendo da necessidade. Caso você seja meu contemporâneo e já teve uma pilha de cartões embaralhada pelo menos uma vez na vida, estou certo que você nunca se esqueceu do trabalho que dava para reordená-la novamente. Os mais experientes usavam um lápis para numerar a pilha de cartões e facilitar a reordenação, caso um acidente ocorresse.

Downsizing, Microsoft, Apple e outras “novidades”

Lembro também que pra “caçar bugs” nos meus programas mais facilmente, imprimia tudo e levava pra casa. Abria as listagens naqueles formulários contínuos esticados pelo corredor da casa e ficava engatinhando pra cima e pra baixo acompanhando a lógica, pedindo pelo amor de Deus pra ninguém pisar com sapato sujo em cima enquanto eu ainda precisava da listagem com as anotações feitas a lápis para corrigir os erros. Agora parece engraçado, mas era bem difícil na época.

Migrar do grande porte para o PC foi rapidinho, até por que trouxeram tudo que já existia: as linguagens, os aplicativos e mais algumas facilidades. Lembro que tinha um programa de planilha eletrônica, o VisiCalc. Depois foi lançado o SuperCalc. Estes podem ser considerados o bisavô e o avô do Excel da Microsoft. Acho até que nessa época a Microsoft era uma empresa de garagem e Bill Gates ainda programava.

Logo, logo veio a Apple de Steve Jobs (ou será que foi antes?!) com o Apple I, II e as interfaces gráficas do Amiga. Era uma novidade atrás da outra, disk drive, hard disk, depois disco ótico, tudo parecia ter ficado muito fácil, numa época em que um micro “bom” da IBM tinha 64Kbytes de memória, velocidade de 4,77 Mhz e rodava DOS, quer dizer MS-DOS, após um acordo com a Microsoft. A verdade é que a história dessas duas empresas corre lado a lado há mais de três décadas. Descontando-se as rivalidades e excentricidades dos fundadores, essas duas empresas abriram caminho para uma série de novas tecnologias que ajudaram a mudar o mundo.

Amigos perdoem-me se não sigo a sequencia cronológica exata. Lembrem que sou antigo, minha memória já não é mais a mesma.

Ah, e os joguinhos? Sim, começaram a aparecer aos montes, cada um melhor que o outro e cada vez mais precisando de muita memória para “rodar”. Meu favorito era o “Prince of Persia”, lançado no Apple II, se não me engano em 1989. Os usuários de Xbox e PlayStation ficariam espantados com o que considerávamos resolução gráfica naqueles tempos de monitores monocromáticos verdes ou âmbar.

Alguns anos de “maturidade” dos micreiros e entramos na era do “downsizing” com sua plataforma cliente/servidor, linguagens de 3 camadas, protocolos de rede, servidores de aplicação, de banco de dados, de impressão, disso e daquilo. Nessa época comecei a trabalhar com o banco de dados relacional Sybase, pois até então só conhecia IMS e DB2. Fiquei envolvido emocionalmente com Windows, Visual Basic, dBase II e III, Clipper, Powerbuilder, dentre outras “novidades” daquele momento.

Y2K e o “bug” do milênio

Veio então o tão temido “bug do milênio”, pois a maioria dos sistemas armazenava e tratava datas com apenas 2 dígitos por economia. Sim, hoje compramos HD acima de 1 Terabyte pela internet com preço bem razoável, mas memória magnética era muito cara no final do século XX.

Foi realmente uma histeria, o medo de que após a virada do milênio os sistemas reconhecessem o ano 2000 como 1900 seria realmente um desastre. Bancos teriam suas aplicações dando juros negativos, investidores iriam ter prejuízos, empresas iriam à falência, e muitas outras anormalidades financeiras foram previstas, significando uma crise apocalíptica. Mesmo que tudo se normalizasse posteriormente, o bug do milênio causaria uma enorme desordem no sistema econômico mundial. Nesta época, já trabalhava em uma multinacional com sede nos EUA. Tive contato com pessoas de lá (bem esclarecidas) que estocaram comida devido ao receio de um desequilíbrio econômico. Passei incólume, obviamente contribuindo com muitas horas para os sistemas sobreviverem com 4 dígitos de data.

Confesso que sempre fui mesmo um “garoto de programa”, claro no melhor sentido que essa expressão tem. Fazia tanto programas novos quanto procurava erros nos velhos. Um analista de sistemas clássico, não importa a terminologia da moda. Hoje todos são desenvolvedores, arquitetos, especialistas, responsáveis técnicos e etc. Já não programo tanto, algumas escolhas na vida me tornaram Gerente de Projetos, certificado pelo PMI desde 2005. Continuo seguindo na onda, contribuindo de outra forma, com mais métodos e ferramentas, com mais experiência e recursos, mas ainda surfando na TI.

O primeiro computador ninguém esquece

Sou alguém cujo primeiro computador foi um MSX com cartucho de Macro Assembler. Já digitei meus textos no WordStar e já usei CP500 profissionalmente programando em dBase II. O laboratório de computação da PUC era meu paraíso tecnológico com meia dúzia de PCs e certamente fiz várias citações aqui que os mais jovens precisam recorrer ao Wikipédia para entender do que se trata. Sou mesmo antigo.

Hoje, esse limite de 80 colunas não existe mais e os cartões perfurados são apenas lembranças, mas essa antiguidade toda me brindou com muita coisa boa. Precisão, clareza, objetividade e criatividade são habilidades que influenciam meu modo de agir social e profissionalmente. Sim, pois para driblar todas as limitações, estes atributos são indispensáveis.

Os anos passam muito depressa, hoje falamos em terabytes, nano segundos e computação em nuvem. Meu filho mais novo tem seu próprio computador desde seu 5º aniversário. Com as interfaces gráficas e coloridas praticamente intuitivas, ele já explorava quase tudo no micro mesmo sem estar completamente alfabetizado. Na minha humilde residência, temos vários computadores entre desktops e notebooks conectados na rede doméstica, além de tablets, smartphones e impressora wi-fi. Tudo isso acessando internet de alta velocidade.

O mundo está completamente diferente e as mudanças ocorrem muito mais rapidamente. Mas, tenho grande curiosidade para saber daqui a mais alguns anos, com veículos computadorizados, internet das coisas, com tantas milhares de coisas mais acessíveis a um universo muito maior de pessoas, como será o mundo da TI.

E você, amigo da geração X, Y ou Baby Boomer, consegue imaginar?

Marcelo S. Barbosa

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Graduação em Ciências Contábeis e Pós-Graduação em Análise e Projeto de Sistemas (PUC – RJ). Mais de vinte anos trabalhando em empresas de TI de médio e grande porte, em análise de sistemas junto às equipes de desenvolvimento e integração de sistemas. Experiência acumulada também na gestão de equipes e gerenciamento de projetos, com responsabilidades de planejamento, execução, controle e encerramento, ênfase na gestão de custo, prazo e riscos. Experiente na utilização da metodologia CMMI em projetos. Desde 2008 atuando em equipes PMO. Certificação PMP obtida em 2005. Autor do site Projeto Gerenciado: www.projetogerenciado.com.br


3 Comentários

Lucas
2

Muito bom, fico imaginando quao bom seria se tivesse acompanhado a epoca da “velha guarda”, parece bem interessante.

Rodrigo Gomes
3

Muito obrigado por compartilhar sua vasta experiência , estou na primeira graduação em ciências da computação , e seu comentário vai me ajudar muito .

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