Em um mundo que oferece todo o tipo de profissional, você deverá ser aquele com o qual as pessoas podem contar. Do contrário, não venha reclamar se perder seu emprego para um catador de papelão…
Como recrutador na área de TI, e decepcionado que estava com o que alguns candidatos tinham a oferecer, tive a vontade, certa vez, de oferecer emprego a um catador de papelão. Sim, porque programação você até pode ensinar, mas confiabilidade parece ser mais difícil.
E não se trata apenas de ser honesto, o que é, certamente, um pressuposto – além de algo muito desejável, como discutimos no artigo anterior (300g de queijo e 400 de honestidade). A questão aqui é ser alguém com quem se possa contar, alguém que diz que vai fazer e faz, alguém que promete e cumpre.
Em uma palavra: compromisso.
Existe até um termo em inglês atualmente muito “na moda” no mundo dos negócios para ilustrar esse conceito: accountability – que nada tem a ver com contabilidade (aí seria accounting).
Leio o que acabei de escrever e me entristeço. O compromisso não deveria ser um valor “na moda”. Trata-se do tipo de qualidade supostamente atemporal, daquelas que, como a honestidade, deveriam estar sempre presentes nas ações humanas desde os primórdios de nossa civilização.
Sabemos, no entanto, que não é bem assim que a coisa acontece. Para você ter uma ideia, na grade curricular de uma prestigiada faculdade que conheço, existe a presença desse item – e com o termo em inglês mesmo, talvez para ficar mais chique e “na moda”.
Pois se a faculdade viu essa necessidade, é porque a situação está feia. E você verá que está feia mesmo, pois recentemente descobri que se pode contar mais com um catador de papelão do que com muitos profissionais existentes no mercado.
Um exemplo: e-mails lidos no celular. Quantas vezes importantes e-mails são lidos no celular mas as providências necessárias não são tomadas por total descaso impossibilidade logística? Seria tão difícil anotar a pendência para tomar as tais providências em momento oportuno?
Se você prestar atenção, vai ver que a situação é, realmente, crítica. Comece a reparar na quantidade de vezes que você ouve algo como “termino isso até amanhã” para, no dia seguinte, escutar um “puxa, não deu”, seguido das mais variadas e criativas justificativas para a falha – quando, na verdade, a verdadeira explicação é “eu não sei me organizar” ou “eu não dou a mínima para a minha imagem ou minha reputação”.
– Está meio nervosinho hoje, Álvaro?
Ah, estou mesmo e peço desculpas. Dependendo do jeito que a gente chega para escrever o artigo – e dependendo dos requintes de incompetência testemunhados no dia a dia – nossa relação escritor-leitor acaba se transformando em algo como um desabafo em uma consulta psiquiátrica.
Mas, para que você não comece a ter ideias de me cobrar as horas de divã – e para que o papelão não seja o meu, mas o do catador (piada fraca) – vamos ao nosso pitoresco exemplo de compromisso.
No escritório onde trabalho, tivemos que realizar a instalação de aparelhos de ar condicionado diversas vezes. Embora nossa cidade não seja um vilarejo, não são muito numerosas as empresas disponíveis para este serviço. Disponíveis com accountability, então, nem se fala. Já havíamos experimentado uma, trocado por outra (por falta de compromisso da primeira) e, pasme, voltamos à primeira opção quando a segunda começou a se mostrar ainda pior depois de um tempo.
Se você precisa de serviços como este, já deve ter passado por situação semelhante. Você marca o horário. A pessoa simplesmente não aparece. Você liga depois em busca de uma satisfação e o cidadão trata tudo como absolutamente normal, ignorando a própria falha e soltando frases cheias de planejamento como “posso ir aí hoje, então?”.
Por outro lado, lá está o nosso herói: o catador de papelão.
Certa vez, quando muitas caixas se acumularam na empresa, buscamos uma solução mais amiga do planeta do que jogar tudo no lixo comum – em outras palavras, destinar aquela celulose toda para a reciclagem. E, como graças ao papai do céu eu costumo ter alguma sorte na vida, exatamente nesse dia, no trajeto para casa, encontrei na rua um catador puxando seu habitual carrinho.
Perguntei-lhe sobre a possibilidade de ele passar na empresa naquela sexta-feira mesmo. Ele disse que não era possível, pois já tinha um planejamento para aquele dia e seguia uma rota previamente definida…
Curtiu? Tem empresa grande que ainda prioriza o trabalho conforme o nível de decibéis das reclamações do cliente ao telefone – enquanto nosso catador de papelão tem um planejamento para… catar papelão. Durma com um barulho desse.
O itinerante profissional também disse que não conhecia o endereço indicado por mim. Citei, então, um ponto de referência e ele disse que daria um jeito de encontrar. Perguntou se trabalhávamos aos sábados. Eu disse que não. Ficou combinado, então, para segunda-feira às 9h.
Eis que a segunda-feira chegou e, não às 8h59, não às 9h01, mas pontualmente às 9 horas, lá estava o catador, sem GPS, em um endereço previamente desconhecido, honrando o compromisso estabelecido três dias antes com um total estranho que o abordou no meio da rua.
E se você pensa que seu mundo está muito distante da realidade do catador para que precise se preocupar, cuidado. Lembremos do conhecidíssimo caso do camelô que virou megaempresário da indústria da televisão. De repente, você pode achar que o catador de papelão não oferece riscos ao seu emprego e, amanhã, talvez ele se torne seu patrão e mande você catar… coquinhos.
Pense nisso.
4 Comentários
Álvaro, boa tarde:
Amei o seu artigo, não fala de nada técnico, mas de algo extremamente humano (pelo menos, deveria ser), fala de comportamento, de comprometimento, busca pela excelência, responsabilidade, honra e muito mais, coisa que falta em muitos profissionais de todas as áreas e de muitas empresas, basta entrarmos em contato com qualquer central de atendimento ao consumidor. Não vou culpar quem está do outro lado em geral, porque já estive lá e sei como funciona muito bem, a partir das experiências profissionais que tive e aprendi que não devemos falar de algo que desconhecemos e não sabemos como é ou está. Enfim, é algo pra se refletir e se pensar, por isso gostei do artigo!
Já ouvi de muitos que desenvolver sistemas é como fazer um pastel (rápido e qualquer um faz) mas essa analogia com catador de papelão superou a do pasteleiro. Profissionais incompetentes temos em todas as áreas, mas maus gestores que comparam profissionais de TI a catadores ou pasteleiros superam todos eles, e, diga-se de passagem, os temos aos montes…
Artigo simples e direto, ótimo para acomodados e principalmente pessoas desorganizadas, a qual vemos diariamente em nossas vidas, ou até em nós mesmos… Parabéns.
Muito bom Álvaro!!!
Tenho procurado por meses emprego ou estágio em T.I. e tudo o que recebi foi um não por ter sido autêntico. Sempre valorizei o compromisso e honestidade. Quando contratamos um serviço, planejamos a entrega e instalações se houver, e muitas vezes temos que desmarcar outros compromissos e o instalador ou entregador não apareceu, não ligou, não se importou… más tudo bem, ele perdeu muito mais que eu naquele momento.