Numa era em que praticamente todos os dispositivos que usamos possuem microfones e câmeras – sinais de uma evolução tecnológica pensada para facilitar nosso dia a dia e bem estar – não sabemos ao certo o que esses aparelhos escutam de nossas vidas e o quanto isso pode ser invasivo, ético e legalmente questionável.
Sorria, você está sendo ouvido
A situação é mais ou menos assim: você está em casa assistindo TV com sua família, ou no restaurante com seus amigos e comenta sobre aquele novo empreendimento imobiliário que vão lançar no centro. Em questão de horas ou mesmo dias depois, pelo Facebook ou pelos anúncios do Google (ou até pelos anúncios dos sites que você acessar) você é inundado por uma enxurrada de anúncios de imobiliárias e lançamentos de prédios novos… no centro! Estranho, não? Pelos meios tecnológicos atuais, nem tanto. Ou pior, isso seria até provável, ao menos para grandes corporações como Google, Facebook, etc.
Estamos falando aqui do processo de listening, escuta silenciosa e imperceptível que acredita-se que a maioria de nossos dispositivos faz de nós, seja pela nossa SmarTV ou por nosso smartphone “a mando” de nossas redes sociais e sites. Essa realidade “tão Black Mirror” (e aqui essa realidade digna de figurar na série tecnológica já habita entre nós de fato), tem uma finalidade: estudar nossos hábitos de consumo para enviar publicidade.
Esse processo de escuta silenciosa tem lá seu quê de transgressões éticas e legais. Até que ponto seria lícito um dispositivo próximo a você escutar tudo o que você fala, gravar e enviar para um servidor remoto, ainda que seja para construir métricas genéricas sobre perfis de consumo? Até que ponto uma experiência otimizada de consumo (com anúncios sendo veiculados para você com base nas suas preferências – verbalizadas em algum momento) pode afetar sua tranquilidade e privacidade?
Para quem usa dispositivos dotados do sistema operacional Android, a função do Google Assistant (uma espécie de rival da Siri made by Google) possui um recurso de escuta permanente, onde basta você dizer “Ok, Google” para ativá-lo e por alguns segundos requisitar algum comando por voz. O ponto é: sabemos que o Google grava o que você fala, mas não sabemos exatamente o que é feito dessa informação.
A gigante do Vale do Silício afirma nos seus termos e condições que mantém essas gravações para “melhorar o reconhecimento de voz em relação a todos os produtos do Google que usam sua voz”. Ou seja, uma quase confissão pública e contratual de que fazem isso mesmo. A alegação é para incrementar o aprendizado das vozes humanas cotidianas para sua inteligência artificial. Um baita enredo de ficção científica, se nos imaginarmos como cobaias involuntárias.
Mas nem tudo é fundo de pano para uma ficção científica de final catastrófico: estamos longe (pelo menos assim se espera!) de um mundo dominado por inteligências artificiais maléficas, e a gigante do Vale do Silício tem em contrapartida uma transparência exemplar: você pode desativar o sistema de escuta e também pode ter acesso a todo o seu áudio capturado por seus sistemas. Basta se logar nas suas configurações de conta e lá dentro desativar as opções do Google Assistente.
Outro gigante do mundo digital, o Facebook, com 2.2 bilhões de usuários até o primeiro quadrimestre de 2018, está envolvido em polêmicas envolvendo escutas. Depois do escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica em março de 2018, que envolveu 87 milhões de usuários com dados sendo usados indevidamente para a campanha presidencial de Donald Trump, que levou inclusive Mark Zuckerberg a um intenso interrogatório perante parlamentares americanos, agora surge mais uma medida controversa.
A rede social patenteou um sistema que permitirá a captação de áudio de televisores e tablets, ativando os microfones desses dispositivos, numa frequência imperceptível para seres humanos, mas que permitirá captar o que está sendo visto e ouvido em casa pelo aparelho de TV, numa espécie de Shazam (aplicativo de escuta e identificação de músicas) com uma anunciada tecnologia de aprimoramento da escuta sobre o que seus usuários assistem na tv, visando assim direcionar anúncios mais específicos. O que o Facebook alega sobre ter patenteado tecnologia tão controversa é a necessidade de barrar, via patente, que outras empresas adotem o mesmo caminho tecnológico. Mas de toda forma, a polêmica está instaurada para os próximos meses e possivelmente anos, já que a história renderá muitas discussões no campo tecnológico, ético e possivelmente legal.
O fato incontroverso é que já somos constantemente monitorados de todas as formas possíveis e nossos dados acabam sendo vendidos e monetizados para empresas que cada vez mais nos oferecem exatamente e assustadoramente aquilo que precisamos.
E você, já se deparou com algum anúncio sobre um assunto que não pesquisou mas conversou com alguém?